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'Pirâmide mais antiga do mundo' fica na Bósnia e conquistou até Djokovic

A pirâmide da Bósnia - Getty Images/iStockphoto
A pirâmide da Bósnia Imagem: Getty Images/iStockphoto

Colunista de Nossa

06/08/2023 04h00

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43º59'N, 18º09'L
Pirâmide Bósnia do Sol
Visoko, Zenica-Doboj, Bósnia-Herzegóvina

Semir Osmanagic é um empresário bósnio que ficou rico na indústria texana do aço. Ele ganhou certa fama nos anos 2000 em seu país, ao difundir as maravilhas das supostas pirâmides bósnias.

Sabemos que a Europa já teve leões. Mas pirâmides?

Quando Osmanagic visitou a pequena cidade de Visoko, ficou perplexo com a forma piramidal do morro que enfeita a paisagem local. Aquilo não podia ser obra da natureza, pensou. Ainda mais quando ele checou que as arestas da colina estavam alinhadas com os pontos cardeais.

Aquilo só podia ser obra de uma civilização muito antiga, concluiu. No ano seguinte, o empresário publicou um livro sobre o "vale bósnio das pirâmides", no qual defendia que aquele morrinho cobertos de relva era, na verdade, uma estrutura construída por humanos. Não qualquer pirâmide, mas a edificação mais antiga de que se tem notícia, erguida há 12 mil anos.

Osmanagic é um nome recorrente na pseudoarqueologia. Em 2005, ele publicou um outro livro, com informações ainda mais espalhafatosas, em que afirmava que a escrita maia indicava que os ancestrais dessa civilização americana vieram das Plêiades, um conjunto de estrelas na constelação de Touro.

"Os pleiadianos são uma suposta espécie de alienígenas que os teóricos da conspiração acreditam visitar periodicamente nosso planeta", lembra Dan Schreiber no livro "The Theory of Everything Else: A Voyage into the World of the Weird" ("A teoria de todo o resto: uma viagem pelo mundo do estranho", em tradução livre).

"Dizem que eles têm aparência humanoide e que vivem mil anos. De acordo com Osmanagic, quando chegaram aqui, criaram uma civilização avançada em Atlântida."

Em outra obra, o autor bósnio alega que Hitler conseguiu fugir no fim da Segunda Guerra para uma base secreta na Antártida. O cara é bom das ideias.

A pirâmide da Bósnia - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
A pirâmide da Bósnia
Imagem: Getty Images/iStockphoto

É evidente que nenhum pesquisador de respeito jamais levou qualquer uma dessas informações a sério. Por outro lado, não adianta muito condenar quem quer acreditar nessas teorias, até porque elas são, no mínimo, divertidas.

As evidências mais antigas de ocupação humana no país que hoje conhecemos como Bósnia-Herzegóvina são inscrições e gravuras na caverna de Badanj, cerca de 14 mil anos atrás. Isso é bem diferente daquilo que dá para chamar de uma civilização complexa, que ergueu coisas como pirâmides. Ainda mais quando boa parte das terras da Europa naquela época estavam sob uma grossa camada de gelo e as pessoas ainda não haviam começado a desenvolver a agricultura.

Schreiber diz que a geologia desses morros bósnios não tem nada de especial. São dobras em "chevron", um tipo de relevo em que as faces parecem um V invertido. Logo, eles são meio piramidais. Existem exemplos espalhados no mundo todo. Em Vladivostok, por exemplo, as duas "pirâmides" gêmeas russas seguem o mesmo fenômeno geológico.

Orgulho bósnio e apoio do sérvio mais famoso do mundo

Mas as alegações de Osmanagic repercutiram profundamente na Bósnia dos anos 2000, um país ainda traumatizado pela guerra da década anterior. Muita gente se empolgou com a hipótese de que sua nação abrigaria a estrutura mais antiga da humanidade, e a maior pirâmide do mundo.

É que a pirâmide, na verdade a colina Visocica, é sim um lugar especial para os bósnios. Lá ficava a antiga cidade de Visoki, um castelo medieval do século 14. Por volta de 1500 ele já havia sido abandonado, mas o local teve importância na construção da identidade nacional bósnia.

Vista de Visoko, na Bósnia - WikiCommons - WikiCommons
Vista de Visoko, na Bósnia
Imagem: WikiCommons

Ao juntar as ruínas de uma fortaleza medieval com uma pirâmide, ainda mais antiga e monumental que a dos egípcios, Osmanagic criou um mito irresistível para o país. Não importa muito que apenas as ruínas da cidade sejam reais e que o resto seja mera especulação sensacionalista lisérgica.

Dois ex-presidentes bósnios abraçaram publicamente a causa. Um deles, Sulejman Tihic, declarou: "Não é preciso ser um grande especialista para ver que aquilo são ruínas de pirâmides".

Na verdade, precisa. Mas enfim. O governo local decidiu investir 250 mil euros no turismo ao redor das supostas construções.

Em 2009, a revista "Smithsonian" fez uma reportagem sobre o fenômeno, e mostrou que quem levantava a voz para criticar o circo montado em torno de Visoko era antipatriota. Mais de 400 mil pessoas haviam visitado a cidade desde então. Lojas vendiam as típicas quinquilharias turísticas com a temática.

A Fundação Pirâmide do Sol, criada por Osmanagic, recebeu centenas de milhares de dólares em doações de pessoas físicas e de empresas estatais. Segundo a revista, se em 2005 ele era um desconhecido no país, em 2009 era uma celebridade, parado a toda hora nas ruas de Sarajevo.

Segundo Schreiber, as numerosas escavações comandadas por Osmanagic, que é conhecido também como Faraó, revelaram cinco pirâmides, muralhas, um sistema cósmico de wi-fi e milhares de quilômetros de passagens subterrâneas, que se pensava, antigamente, que teriam sido feitas para atividades de mineração.

Infelizmente, o empresário ainda não encontrou nenhuma evidência que satisfaça cientistas de verdade. Mas, precisamos reconhecer, ele bombou a indústria do turismo local. Visoko, que não tinha muitos serviços, ganhou restaurantes e complexos hoteleiros.

Em 2020, a cidade tirou a sorte grande com um novo porta-voz, um sujeito um tiquinho assim mais famoso do que o empresário-autor-de-teses-mirabolantes Osmanagic. O sérvio Novak Djokovic, um dos maiores nomes da história do tênis, começou a visitar Visoko e a meditar no complexo de túneis próximos às pirâmides.

Detalhe para o ano: 2020, quando o mundo parou para lidar com a pandemia, fronteiras foram fechadas e quarentenas precisaram ser impostas. Mas Djokovic, famoso também, entre outras coisas, por se opor a vacinas e às políticas públicas contra a covid, estava lá visitando o país vizinho.

Djoko virou um peregrino recorrente. Alegava se recarregar naquela energia cósmica emitida por civilizações de antanho. Chamava Visoko de "paraíso na Terra". No ano passado, três dias após conquistar seu sétimo título em Wimbledon, inaugurou uma quadra de tênis em Visoko.

A cidade bósnia o adotou como cidadão honorário. Mais que justo. Além de um dos maiores atletas de todos os tempos e de ser um astro global, Djokovic é uma espécie de megafone de ideias pouco convencionais, digamos assim. Ele é praticamente um embaixador da pseudociência, o que acaba servindo ainda mais para um lugar cujos turistas são, em geral, defensores, ou no mínimo fãs inconfessos, de teorias conspiratórias.

Schreiber cita como exemplo a relação do tenista sérvio com brócolis. Qualquer conversa negativa próxima a um talo de brócolis extirpa todos os seus nutrientes, além de seu sabor. Djokovic não permite baixo-astral à mesa. Assistir à televisão ou mandar mensagens enquanto come também está fora de cogitação. Em um livro, afirmou que comer com medo ou raiva não permite que você absorva o melhor dos nutrientes.

Ele está em casa na pirâmide bósnia. Com wi-fi intergaláctico e tudo.

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